11 MAR 2019 - Neste artigo, Arnaldo Antonio de Souza Temochko, explica como acontece a relação entre liturgia, campanha da fraternidade e políticas públicas, e como pode ser celebrado na celebração liturgica.
1.Há relação entre Liturgia, Campanha da Fraternidade e Políticas Públicas?
A Liturgia é o culto público que Cristo, o sacerdote da nova e eterna aliança, presta ao Pai (cf. SC 7). Ele louva e suplica ao Pai pelas maravilhas e necessidades do mundo todo. Enquanto memorial de sua encarnação, vida, paixão, morte e ressurreição, em cada celebração litúrgica se faz presente o mistério da entrega total de sua vida, conseqüência da sua fidelidade à causa do Reino de Deus. Este culto litúrgico que Jesus presta ao Pai é a expressão do culto existencial que foi sua vida: uma oferenda agradável a Deus (cf. Heb 7,27). Nós, cristãos e cristãs, pelo Batismo, participamos deste único sacerdócio de Cristo e, por isso, ‘com Cristo, em Cristo e por Cristo’ podemos participar do culto público que Jesus presta ao Pai (cf. LG 10). Assim como Jesus o culto prestado por nós na liturgia deve ser expressão autêntica do culto existencial que é a nossa vida: a verdadeira liturgia que agrada a Deus é adorá-lo em espírito e verdade (cf. Jo 4,23, 1Pd 2,5). Sabemos quão difícil é um culto (litúrgico) estar em perfeita harmonia com o outro (existencial). Afinal, com São Paulo também podemos dizer que diversas vezes fazemos o mal que não queremos, deixando de fazer o bem que almejamos (cf. Rom 7,19). Nesse sentido é que a Liturgia é verdadeiro ‘cume e fonte’ (SC 10): por nem sempre corresponder ao culto existencial (cume) nela buscamos forças para viver de acordo com o projeto do Reino de Deus (fonte). Portanto, liturgia tem a ver com a vida. Na celebração eucarística proclamamos o mistério da fé: anunciamos a morte do Senhor nas nossas próprias mortes, na destruição da natureza, na injustiça social; proclamamos a sua ressurreição nas nossas próprias superações, nas pessoas e organizações que praticam o bem, nos esforços pela paz, na acolhida do outro; até que o Senhor volte e Deus seja ‘tudo em todos’ (cf. 1Cor 15,28). Quando a liturgia não é expressão da fé vivida, encarnada, testemunhada ela se torna apenas um conjunto de ritos destituídos do ser verdadeiro sentido. É a liturgia pagã denunciada pelo profeta Amós (cf. Am 5,21-25).
Em suma, liturgia tem a ver com a CF e com o tema deste ano (2019) porque “o gesto litúrgico, não é autêntico se não implica um compromisso de caridade, um esforço sempre renovado por ter os sentimentos de Cristo Jesus, e para uma contínua conversão. A instituição divina da liturgia jamais pode ser considerada como um adorno contingente da vida eclesial, já que nenhuma comunidade cristã se edifica se não tem sua raiz na celebração da Eucaristia, pela qual se inicia toda a educação do espírito da comunidade. Esta celebração, para ser sincera e plena, deve conduzir tanto às várias obras de caridade e mútua ajuda como à ação missionária e às várias formas de testemunho cristão”. (Med 9, 2)
2.Como esta relação acontece na celebração litúrgica
Por outro lado nossas celebrações são ‘memorial’ e ‘mistério’. A linguagem própria da liturgia é a linguagem do símbolo que ultrapassa a frágil fronteira da razão para nos comunicar a graça: pelos sentidos ao Sentido. Nos atinge não somente o intelecto, mas nossa ‘inteireza’, nossa integralidade, todo o nosso ser. Nos convida a uma mudança de vida pela experiência vivida. Portanto, na celebração litúrgica não cabem doutrinações, não nos utilizamos da linguagem discursiva, mas da linguagem orante. A transformação que ocorre na comunidade celebrante não decorre de imperativos morais, mas da experiência que a assembleia litúrgica, assumindo o seu papel de sujeito, faz do Crucificado-Ressuscitado através dos símbolos, palavras e gestos simbólicos.
Portanto, para celebrar a liturgia no tempo quaresmal levando em conta a CF, seu tema e seu lema não basta “falar da CF nas missas”, mas celebrar o mistério pascal de Cristo alargando nossas consciências para a conversão social querida pela Igreja ao nos apontar determinado tema. “Não é só quando se faz a leitura “do que foi escrito para nossa instrução” (Rom 15,4), mas também quando a Igreja reza, canta ou age, que a fé dos presentes é alimentada e os espíritos se elevam a Deus, para se lhe submeterem de modo racional e receberem com mais abundância a sua graça” (SC 33).
3.A CF na celebração litúrgica
Recordação da Vida
A “Recordação da Vida” (termo recolhido no Ofício Divino das Comunidades), pode acontecer logo após a Saudação Inicial. Conforme previsto no Missal Romano (p. 390, n. 3), “o presidente da celebração, o diácono ou um ministro leigo poderá, em breves palavras, introduzir os fiéis na missa do dia”. Neste momento é oportuno lembrar a CF, seu tema e lema. Não como uma prece e muito menos como uma “intenção”, mas como uma ‘recordação’. Muito oportuno é trazer presente à celebração o sentido que tem a CF no tempo quaresmal. Aspectos diversos podem ser ressaltados a cada Domingo para não ficar repetitivo. Neste momento pode também ser valorizado o cartaz da CF. Alguns subsídios mudaram para este lugar da celebração o chamado “comentário inicial”. Há que se tomar muito cuidado para não fazer deste comentário um longo discurso ou uma espécie de “mini-homilia” e, por outro lado, deve se zelar para que não aconteçam falas improvisadas que podem comprometer a harmonia e clima orante da celebração.
Homilia
Sendo um dos momentos próprios para a atualização do mistério de Cristo na vida, a homilia é um lugar privilegiado para ligar a CF com as leituras bíblicas do Domingo. De forma mistagógica a homilia será capaz de unir o mistério da vida ao mistério pascal de Cristo e, nesse sentido, será muito oportuno trazer presente o tema, o lema e as atividades da CF como uma realidade que pede a inserção dos cristãos e cristãs. A homilia não é um momento para uma conscientização acerca de temas. Como parte integrante de celebração litúrgica, também ela deve manter a linguagem simbólica e orante própria da liturgia.
Preces
A Oração da Assembleia é a Palavra ouvida e meditada naquela celebração que se transforma em súplica ao Senhor pelas necessidades da Igreja e de todo o mundo. Não por acaso ela está situada na Liturgia da Palavra; as preces devem nascer da experiência comunitária que se deixou iluminar pela Palavra de Deus e deseja ser transformada por ela no dia a dia pós celebração. Igualmente ao que foi dito anteriormente, também nas preces se faz a opção por uma linguagem orante e simbólica, que poderá ser reforçada por uma resposta cantada da assembleia. Convém lembrar o que diz a IGMR 71 sobre a elaboração das preces: “as intenções propostas sejam sóbrias, compostas por sábia liberdade e breves palavras e expressem a oração de toda a comunidade.”
Compromisso
No final da celebração também será oportuno uma indicação que possa favorecer o comprometimento de toda a comunidade no que tange à CF. O comunicado das ações da CF que estão sendo realizadas na comunidade também pode ser feito neste momento. Muito importante é lembrar que sempre deve ser enfatizado a ligação com a espiritualidade quaresmal. Nela se assenta o sentido da realização da CF: conversão do coração que necessariamente leva à conversão das estruturas de pecado na sociedade.
Celebrações penitenciais
Muito oportunas no tempo litúrgico da quaresma, as celebrações penitenciais são momentos muito próprios para celebrar tendo em vista a CF. Como são celebrações da palavra com caráter penitencial, elas podem ser realizadas com toda a comunidade e também com grupos específicos (jovens, crianças, crismandos, famílias, catequistas, pastorais, movimentos, etc). A partir de textos bíblicos que fundamentam o tema e o lema da CF, as celebrações penitenciais são um ótimo momento para a sensibilização em torno do tema proposto para cada ano. Assim como em toda celebração litúrgica, há que se tomar cuidado para não instrumentalizar a liturgia a serviço de um tema.
4.Um hino para a CF
A partir do ano de 2006 foram extintas as antigas missas da CF. Graças a um amadurecimento teológico-litúrgico, a Igreja no Brasil compreendeu a importância das comunidades construírem um repertório litúrgico para o tempo da quaresma que se solidifique. As mudanças constantes no repertório da quaresma através das missas da CF, além de não possibilitarem esta solidificação do repertório, diversas vezes estavam mais a serviço de divulgar o tema e o lema da CF do determinado ano, do que cantar o mistério de Cristo no tempo quaresmal, que é a função própria da música litúrgica neste tempo do ano litúrgico.
Desde então temos para cada ano apenas o hino da CF. O melhor lugar para o Hino da CF é como canto final. Pode ser cantado após a homilia se cumprir a função de realçar a mistagogia da mesma. Não deve ser cantado como canto de abertura, afinal não cumpre as funções ministeriais exigidas deste canto. É importante lembrar que a finalidade do Hino da CF não é litúrgica em si mesma, isto é, não é um hino pensado apenas para as celebrações litúrgicas. É um hino para a Campanha como um todo, para ser cantado em todas as atividades da CF reforçando seu tema, seu lema, os objetivos, sua mensagem principal, etc.
O CD lançado todos os anos pela CNBB, embora traga na capa o cartaz da CF não é exclusivo de cantos para a CF, mas de cantos para a liturgia no tempo quaresmal. Normalmente, ele traz gravado o Hino da CF acrescido de outros cantos da quaresma. As comunidades gradativamente devem se servir deste e de outros bons materiais para construírem seu próprio repertório litúrgico-musical tendo como base a realidade cultural (ritmos, cadências, etc) e a liturgia deste tempo (antífonas, orações, evangelhos, etc).
5.CF não acontece apenas nas celebrações litúrgicas
A CF é uma ação da Igreja própria para o tempo da quaresma segundo aquilo que foi querido pelo Vaticano II: “a penitência quaresmal deve ser também externa e social, que não só interna e individual. Estimule-se a prática da penitência, adaptada ao nosso tempo, às possibilidades das diversas regiões e à condição de cada um dos fiéis” (SC 110). Entretanto ela não é algo específico para a liturgia, mas ela deve ir além. A CF deve acontecer em todos os âmbitos da comunidade eclesial e social. Não basta “falar da CF” e cantar o Hino nas celebrações. Seu objetivo é mais amplo. Para que ele seja atingido as ações devem acontecer em todos os espaços que uma “Igreja em saída” pode ocupar.
Arnaldo Antonio de Souza Temochko é doutorando em Teologia pela PUCPR. Mestre e graduado em Teologia (PUCPR). Especialista em Liturgia (UNISAL) e Música Ritual (FACCAMP). Membro do Centro de Liturgia D. Clemente Isnard (São Paulo-SP) e da Celebra – Rede de Animação Litúrgica.
Fonte: centrodeliturgia.com.br